sexta-feira, novembro 11, 2005

A avó Eglantina


Apaixonei-me pela minha bisavó na mon­tra de um papelaria do meu bairro.
Celeste, acho que era o nome. Da papelaria, claro: a mi­nha bisavó chamava-se Eglantina, estava de pé, muito direita, metida num longo vestido preto com gola branca, segu­rando as rédeas de uma carrocinha castanha, diante de um campo de trigo, com ar de quem acabou de dizer para o meu bisavô: — São ho­ras da ceifa, Januário.

Fiquei muito tempo a olhar para ela, pen­sando por que razão não estava o meu bisavô a seu lado, no postal. Afazeres, decerto: os bisavôs são gente de muito trabalho. De repen­te pareceu-me vê-la a piscar-me o olho, mas rapidamente me dei conta do engano: bisavó que se preza não anda neste mundo a piscar o olho à primeira bisneta que lhe aparece pela frente.
Em casa, disse à minha mãe:
— Há um retrato da bisavó Eglantina na montra da Papelaria Celeste. Está diante de um campo de trigo, cheia de saudades minhas.
A minha mãe engasgou-se, tossiu, recom­pôs-se e disse:
— A tua bisavó chamava-se Maria das Dores, e o único campo que conheceu era o quintal onde estendia a roupa.
O meu pai, sempre económico com as pa­lavras, disse:
— A tua bisavó morreu há tantos anos que nem me lembro do nome.
Bisneta honrada não tem ouvidos. Trinquei um gomo de laranja, e disse:
— A minha bisavó chama-se Eglantina, e vai ficar em cima da minha mesa-de-cabeceira. O meu quarto é grande, e uma bisavó ocupa pouco espaço. Além de que uma bisavó faz sempre muito jeito numa casa.
- Ainda tens pouca tralha no teu quarto... — disse a minha mãe.
—Mania das grandezas... Para que quererás tu uma bisavó, não me dizes? — resmungou o meu pai.

Bisneta honrada não tem ouvidos. No dia seguinte a minha bisavó Eglantina, no seu vestido preto de gola branca, guiou a carrocinha pelo campo de trigo fora, em direcção à moldura da minha mesa de cabeceira.
Quando o sono custa a chegar, olho para ela e ela lá está, muito direita, com ar de quem acabou de dizer: "são horas da ceifa, Januário". E enquanto espero que o meu bisavô se resolva finalmente a entrar para dentro do retrato, sorrio-lhe e adormeço.
Alice Vieira

4 Opiniões

Anonymous Anónimo said...

Uma belissima história para ler à minha filha logo à noite. Não conhecia e por momentos pensei que seria teu :-)

Já agora visita este site:
http://www.historiadodia.pt/pt/index.aspx

domingo, 13 novembro, 2005  
Anonymous Anónimo said...

Entrou no mundo dos sonhos pela mão da bisavó Eglantina...Percorria agora o mesmo campo de trigo e o sol que brilhava no rosto da "bisa" (assim aprendeu a chamar-lhe)queimava-lhe também a cara.
"- Bisa! Onde está o avô?"...

Ana Santos

segunda-feira, 14 novembro, 2005  
Blogger Siddhichandra said...

E ela respondeu:

«A avó foi com o Coelhinho e o Palhaço no comboio ao circo!» :-)

Desculpa Ana a brincadeira mas achei que merecia!!

segunda-feira, 14 novembro, 2005  
Anonymous Anónimo said...

vai até onde te levar a imaginação :-)

segunda-feira, 14 novembro, 2005  

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